Anotações digestivas

Enquanto espero o chá da espinheira santa ferver e me salvar de um dia comendo mal, observo da cozinha as luzes de dois apartamentos que sempre me atraíram e intrigaram nas madrugadas da bela vista: nos fundos, algum apartamento de uns dois ou três andares pra cima, que quase todas as madrugadas acende uma luz fortíssima branca. Creio que a pessoa vá dormir na hora em que desliga, ali pelas cinco da manhã. Algum idoso com insônia que já inventou diversas atividades para compor a rotina de seu marejo nas geladeiras do entressono, provavelmente capitaneado pela tremenda luz gélida que insiste em conservar. O do outro prédio, da esquadria azul médio, um azul aberto, chama a atenção pela luz diametralmente oposta: amarelada quente, extremamente contida, uma luz que emana conforto e um lugar de outro tempo, que me remete aos melhores momentos de fantasia na primeira infância de ser eu, eu mesma e as ficções que produzia assistindo a tv cultura e seus programas em casas do projeto de casa popular brasileira dos anos 30, quando se pensou em haver aqui um país. Depois veio a guerra e foi tudo pro caralho. O cômodo de onde vem a luz parece ser um híbrido de escritório com uma espécie de pequeno depósito ou ateliê. O apartamento parece ser grande e ter todas as divisões e espaços dignos de uma casa. Já vi gente preta circulando ali, há flores de plástico ou secas pelos vidros translúcidos das janelas e portas. De alguma forma, as imagens e mistérios circundantes a esse apartamento me pegam extraordinariamente, sinto-me profundamente tocada por algo ali, apesar de ser um local nitidamente estrangeiro, uma vez que não há sombra do caos e acúmulo que compõem essencialmente o modo de vida dos meus familiares – que não é o meu, mas acaba fondo. Enquanto as muçulmanas acordam para a ablução do fajr, talvez aproveitando para tomar seus últimos goles de água e alguma comida leve até o próximo pôr-do-sol, me incumbo da tarefa que mais tem ocupado meus dias: digerir. As madrugadas que passei aqui na pandemia trataram muito desse infinito tema – sempre chegam novas comidas e fatos indigestos. Felizmente, nas profundezas do justo sono, o homem vai para nárnia e sinto-me à vontade para inquietar até digerir, entre seus bons algodões e un imprenable cheiro de roupa limpa, que não resolvem, mas acalentam bem esse processo de jiboiar as comidas, sentimentos e ideias. Talvez dessas coisas seja composto o amor, na presença ressoante do carinho mesmo quando não de corpo brutalmente presente, mas ativo em espírito de calmaria na agitação. É algo de nossa ligação: agitar para acalmar.

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